2025/04/16
MARGUERITE YOURCENAR, França,
in Mémoires d'Hadrien, 1958
Na noite que sucedeu àquelas celebrações, do alto de um terraço vi arder Roma. As fogueiras suplantavam os incêndios ateados por Nero e eram quase tão terríveis. Roma: o cadinho, mas também a fornalha e o metal em brasa, o martelo mas também a bigorna, a prova visível das transformações e dos recomeços da história, um dos lugares do mundo onde o homem terá vivido mais tumultuosamente. A guerra de Tróia, de onde se evadira um fugitivo que levava com ele o pai velho, o filho pequeno e os espíritos familiares, culminava nessa noite em grandes labaredas de júbilo. Eu pensava também, com uma espécie de terror sagrado, nos incêndios de amanhã. Os milhões de vidas passadas, presentes e futuras, os edifícios recentes nascidos de edifícios antigos e seguidos de edifícios por nascer, parecia-me que se sucediam no tempo como vagas; por sorte foi a meus pés que, nessa noite, as grandes ondas vieram quebrar-se. Omito os momentos de delírio em que a púrpura imperial, a seda sagrada, que tão raramente eu aceitava envergar, foi lançada sobre os ombros da criatura que para mim se tornara o meu Génio: eu precisava, é certo, de opor o vermelho intenso ao louro pálido de uma nuca, mas sobretudo de obrigar a minha felicidade, a minha Fortuna, entidades vagas e incertas, a encarnarem nessa forma terrestre, a ganharem o calor e o peso tranquilizador da carne. As paredes sólidas do Palatino, que eu habitava tão pouco mas que acabara de reconstruir, oscilavam como os flancos de uma barca; as cortinas abertas para deixar entrar a noite romana eram as de um pavilhão de proa; os gritos da multidão eram o barulho do vento nos cordames. E o escolho enorme vislumbrado ao longe, na escuridão, construção gigantesca do meu túmulo que neste momento começava a ser erigido nas margens do Tibre, não me inspirava terror, nem pesar, nem meditação vã sobre a brevidade da vida.
2025/01/09
Whatever I see I swallow immediately
Just as it is, unmisted by love or dislike.
I am not cruel, only truthful,
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.
Now I am a lake. A woman bends over me,
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully.
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.
SYLVIA PLATH, U.S.A., Mirror, 1961
Sou prata e exacta. Não tenho ideias feitas.
Tudo o que vejo engulo imediatamente
Tal como é, livre de amor ou desagrado.
Não sou cruel, sou verdadeira,
Olho de um pequeno deus, rectangular.
Medito quase todo o tempo sobre a parede em frente.
É cor de rosa, com pintas. Olhei-a tanto
Que a acho parte do meu coração. Mas pisca.
Rostos e escuridão separam-nos sem parar.
Agora sou um lago. Uma mulher inclina-se para mim
À procura dos meus limites, para ver o que ela é realmente.
Depois volta-se para aquelas mentirosas, as velas e a lua.
Vejo-lhe as costas, e reflicto-as fielmente.
Retribui-me com lágrimas e mãos agitadas.
Sou importante para ela. Vai e vem.
Todas as manhãs é o rosto dela que toma o lugar da escuridão.
Em mim afogou uma rapariga, e em mim uma velha
Cresce para ela dia após dia, qual terrível peixe.
2024/07/03
Nathan thought his mother came out onto the porch with him because she knows, without needing to be told, about the ways in which today and the day before and the day to come evacuate him. Because his mother knows in ways no one else does how impossible it's become for him to reenter the orderly passage of time, how he lives in an ongoing series of minutes that arrive and depart but are not quite fully connected to each other, so that a day is a rapid-fire progression of still photographs, with Nathan as their subject. Here he is in a room with Chess and Odin and a blue rabbit. Here he is, turning to face his father's approaching headlights. He's felt, he's hoped, that his mother knows about it or can guess at it in ways no one else can, not even Doctor Missus Doctor, who gets paid to know about the ways in which Nathan has been emptied, has become photographs of himself. He has no language to convey that. He can only hope someone - if not his mother, someone else - will figure it out. He has no faith in Doctor Missus maneiraDoctor, with her Would you say more manner, Doctor Missus Doctor, who does not love him, and who dyes her hair a dead black.
His mother loves him. But she hasn't forgiven him, even if she does her best to act as if she has.
MICHAEL CUNNINGHAM, E.U.A. in 'Day', 2024
Aí estão eles. Nathan percebe que a mãe os esperou no alpendre, e achou que estava à espera dele - ele, o seu amor mais verdadeiro, o que lhe dá atenção, o que lhe respeita a privacidade (não é mãe de abraços; Nathan não se importa). Hoje apanhou cedo o comboio, sozinho. Violet ainda não aceita que os comboios são seguros.
Nathan pensou que a mãe veio ter com ele ao alpendre porque conhece, sem precisar que lhe digam, de que maneira o dia de hoje e o de ontem e o que há-de vir o esvaziam. Porque a mãe sabe, como mais ninguém, que para ele se tornou impossível retomar a ordenada passagem do tempo, que ele vive numa sucessão contínua de minutos que chegam e partem mas não estão inteiramente ligados entre si, e o dia é uma sequência de fotogramas que tem Nathan como tema. Ali está ele, numa sala com Chess e Odin e um coelho azul. Ali está ele, a voltar-se e a ver os faróis do pai a aproximarem-se. Sentiu, esperou que a mãe soubesse ou conseguisse adivinhar de uma maneira que mais ninguém consegue, nem sequer a Doutora, a Menina Doutora, que é paga para perceber a maneira como Nathan ficou vazio e se transformou em fotografias de si mesmo. Não tem palavras para transmitir aquilo. Só lhe resta esperar que alguém entenda - se não for a mãe, outra pessoa. Não tem fé na Doutora, a Menina Doutora, com aquela entoação Podias explicar? Doutora, a Menina Doutora, que não o ama e que pinta o cabelo de preto num tom de defunto.
A mãe ama-o. Mas não lhe perdoou, ainda que faça o possível por parecer que sim.