2020/11/11



It was that time

against the backdrop of trees

the russet sky,

the houses built up like half promises on rocks

when I started to get wise. And there was 

drama going on on land.

A thin slither of moon,

wet oil on the ground,

and all the white June flowers.

Your phone rang. You looked at it

and then at me. There was a shadow around

your head. I felt the thing we try not to feel.

It's a new age for loving

now - anything goes,

so no one is allowed to dissolve in public

we rent each other's beds

for weeks and weeks and weeks 

with nothing to show for it at the very end

but dirt underneath our nails.

I am still gasping, even today

for one I treated so badly

who told me they

wished me the very best

in the softest, most devastating way.

YRSA DALEY-WARD, E.U.A., 2020


Foi no tempo, 

contra um fundo de árvores

e céu cor de barro,

casas construídas como meias promessas sobre rochas,

em que eu comecei a ganhar juízo. E em terra

os dramas aconteciam.

Um fino deslizar de lua,

o chão molhado de óleo

e todas as flores brancas de Junho. 

O teu telefone tocou. Olhaste-o,

e depois a mim. Tinhas uma sombra em volta

da cabeça. Senti a coisa que tentamos não sentir.

Agora é uma nova era para

amar - vale tudo

por isso a ninguém é permitido desmoronar em público

alugamos as camas uns dos outros

durante semanas e semanas e semanas

e no fim só temos para mostrar

porcaria debaixo das unhas.

Ainda hoje sufoco

por alguém que tratei tão mal

e me disse que

me desejava o melhor

da maneira mais branda e arrasadora.


 

2020/10/25

WILLIAM BLAKE, gravura em cobre, c. 1789   
 

For a moment the room appeared to darken, as it used to do when he was about to perform some singular experiment, and in the darkness the peacocks upon the doors seemed to glow with a more intense color. I cast off the illusion, which was, I believe, merely caused by memory, and by the twilight of incense, for I would not acknowledge that he could overcome my now mature intellect; and I said: 'Even if I grant that I need a spiritual belief and some form of worship, why should I go to Eleusis and not to Calvary?' He leaned forward and began speaking with a slightly rhytmical intonation, and as he spoke I had to struggle again with the shadow, as of some older night than the night of the sun, which began to dim the light of the candles and to blot out the little gleams upon the corner of picture-frames and on the bronze divinities, and to turn the blue of the incense to a heavy purple, while it left the peacocks to glimmer and glow as though each separate color were a living spirit. I had fallen into a profound dreamlike reverie in which I heard him speaking as at a distance. 'And yet there is no one who communes with only one god,' he was saying, 'and the more a man lives in imagination and in a refined understanding, the more gods does he meet with and talk with, and the more does he come under the power of Roland, who sounded in the Valley of Roncesvalles the last trumpet of the body's will and pleasure; and of Hamlet, who saw them perishing away, and sighed; and of Faust, who looked for them up and down the world and could not find them; and under the power of all those countless divinities who have taken upon themselves spiritual bodies in the minds of the modern poets and romance writers, and under the power of the old divinities, who since the Renaissance have won everything of their ancient worship except the sacrifice of birds and fishes, the fragrance of garlands and the smoke of incense. The many think humanity made these divinities, and that it can unmake them again; but we who have seen them pass in rattling harness, and in soft robes, and heard them speak with articulate voices while we lay in deathlike trance, know that they are always making and unmaking humanity, which is indeed but the trembling of their lips.'

WILLIAM BUTLER YEATS, Irlanda,

in Rosa Alchemica, 1913


Por um momento julguei ver a sala escurecer, como era habitual antes de ele pôr em prática uma experiência singular e, na escuridão, os pavões que cobriam as portas pareceram brilhar com uma cor mais intensa. Rejeitei a ilusão que era, creio, meramente causada pela memória e pela luz fraca do incenso, pois não queria admitir que ele pudesse dominar-me a inteligência - agora, na maturidade. E disse-lhe: 'Ainda que admita precisar de uma crença espiritual e de alguma forma de culto, porque escolheria Elêusis e não o Calvário?' Inclinou-se e começou a falar com uma entoação levemente ritmada e, enquanto falava, tive de voltar a lutar com a sombra de uma noite mais antiga do que a noite solar, que começou a enfraquecer a luz das velas e a apagar os pequenos reflexos nos cantos das molduras e sobre as divindades de bronze e a transformar o azul do incenso em roxo denso; mas deixou os pavões a brilhar, incandescentes, como se cada cor só por si fosse um espírito vivo. Eu caíra em profundo devaneio, como num sonho, e ouvia-o falar como se estivesse longe: 'E no entanto não há ninguém que comungue com um só deus', dizia, 'e quanto mais o homem vive em imaginação e compreensão subtil, maior é o número de deuses que encontra e a quem fala, e mais fica sob o poder de Roland, que fez soar no Vale de Roncesvalles a última trombeta da vontade e do prazer do corpo; e de Hamlet, que os viu perecer e suspirou; e de Fausto, que os procurou pelo mundo inteiro e não os encontrou; e sob o poder de todas as incontáveis divindades, que decidiram pôr seus corpos espirituais na mente dos poetas e romancistas modernos; e sob o poder das velhas divindades que, desde o renascimento, tudo recuperaram do antigo culto, excepto o sacrifício de aves e de peixes, fragrância de grinaldas e fumo de incenso. A maioria pensa que foi a humanidade quem fez tais divindades e que pode voltar a desfazê-las; mas nós, que as vimos passar com estrepitosas armaduras e delicadas vestes, e as ouvimos falar com vozes claras enquanto jazíamos num transe igual ao da morte, sabemos que elas estão sempre a fazer e a desfazer a humanidade, que mais não é do que o frémito dos seus lábios.       


    

2020/09/17


 I don't regret for a single moment having lived for pleasure. I did it to the full, as one should do everything that one does. There was no pleasure I did not experience. I threw the pearl of my soul into a cup of wine. I went down the primrose path to the sound of flutes. I lived on honeycomb. But to have continued the same life would have been wrong because it would have been limiting. I had to pass on. The other half of the garden had its secrets for me also. Of course all this is foreshadowed and prefigured in my books. Some of it is in The Happy Prince, some of it in The Young King, notably in the passage where the bishop says to the kneeling boy, 'Is not He who made misery wiser than thou art?' a phrase which when I wrote it seemed to me little more than a phrase; a great deal of it is hidden away in the note of doom that like a purple thread runs through the texture of Dorian Gray; in The Critic as Artist it is set forth in many colours; in The Soul of Man it is written down, and in letters too easy to read; it is one of the refrains whose recurring motifs make Salome so like a piece of music and bind it together as a ballad; in the prose poem of the man who from the bronze image of the 'Pleasure that liveth for a moment' has to make the image of the 'Sorrow that abideth for ever' it is incarnate. It could not have been otherwise. At every single moment of one's life one is what one is going to be no less than what one has been. Art is a symbol, because man is a symbol. 

OSCAR WILDE, UK
in De Profundis, 1897


Nem por um instante lamento ter vivido para o prazer. Fi-lo plenamente, como se deve fazer tudo aquilo que se faz. Não houve prazer que não experimentasse. Lancei a pérola da minha alma num copo de vinho. Desci o carreiro de malmequeres ao som de flautas. Vivi no jardim das delícias. Mas ter continuado essa vida seria errado, porque me limitaria. Tinha de avançar. A outra metade do jardim também tinha para mim os seus segredos. É claro que tudo isto vem anunciado e antecipado nos meus livros. Uma parte em O Príncipe Feliz, outra em  O Jovem Rei, especialmente na passagem em que o bispo diz ao rapaz ajoelhado 'Não foi Ele que fez a infelicidade mais sábia do que tu?', frase que, quando a escrevi, me pareceu pouco mais do que uma frase; e grande parte está escondida na nota de condenação que, qual fio de púrpura, percorre a trama de Dorian Gray; em O Crítico enquanto Artista apresenta-se com muitas cores; em A Alma Humana vem bem explicado e em caracteres facílimos de ler; é um dos refrãos cujos motivos recorrentes fazem de Salomé uma peça musical e lhe dão a forma de balada; no poema em prosa do homem que da imagem em bronze do 'Prazer que durou um momento' teve de fazer a imagem da 'Mágoa que durou para sempre', corporizou-se. Não podia ser de outra maneira. Em cada momento da nossa vida somos tanto o que seremos como aquilo que fomos. A arte é um símbolo, porque o homem é um símbolo.

2020/08/01

    Everyman's Library, capa com retrato de JANE AUSTEN    de Ozias Humphrey, c. 1792 (óleo sobre      tela, pormenor)


'Two steps, Jane, take care of the two steps. Oh! no, there is but one. Well, I was persuaded there were two. How very odd! I was convinced there were two, and there is but one. I never saw anything equal to the comfort and style - Candles every where. - I was telling you of your grandmamma, Jane, - There was a little disappointment. - The baked apples and biscuits, excellent in their way, you know; but there was a delicate fricassee of sweetbread and some asparagus brought in at first, and good Mr. Woodhouse, not thinking the asparagus quite boiled enough, sent it all out again. Now there is nothing grandmamma loves better than sweetbread and asparagus - so she was rather disappointed, but we agreed we would not speak of it to any body, for fear of its getting round to dear Miss Woodhouse, who would be so very much concerned! - Well, this is brilliant! I am all amazement! could not have supposed any thing! - Such elegance and profusion! - I have seen nothing like it since - Well, where shall we sit? where shall we sit? Any where, so that Jane is not in a draught. Where I sit is of no consequence. Oh! do you recommend this side? - Well, I am sure, Mr. Churchill - only it seems too good - but just as you please. What you direct in this house cannot be wrong. Dear Jane, how shall we ever recollect half the dishes for grandmamma? Soup too! Bless me! I should not be helped so soon, but it smells most excellent, and I cannot help beginning.'

JANE AUSTEN, UK,
Emma, 1815


Dois degraus, Jane, atenção aos dois degraus. Ah, é só um. Pensava que eram dois. Estranho! Pensava que eram dois, e é só um. Nunca vi nada igual, o conforto, o estilo - velas em todo o lado. Dizia-lhe da avó, Jane, - houve alguma decepção - os biscoitos e as maçãs assadas, primorosos, já sabe; mas primeiro trouxeram espargos e um delicado fricassé de fígados, e Mr. Woodhouse, coitado, pensando que os espargos não estavam no ponto, mandou-os para trás. Ora não há nada que a avó mais adore do que fígados e espargos - por isso ficou decepcionada, mas não quisemos dizer nada a ninguém, com medo que chegasse aos ouvidos da querida Miss Woodhouse e a deixasse consternada! - Ah, magnífico! Estou maravilhada! Não supunha isto! A elegância, a variedade! Não via nada assim desde... Bem, onde nos sentamos? Onde nos sentamos? Em qualquer lado, desde que a Jane não apanhe correntes de ar. Eu fico em qualquer lado, isso não importa. Recomenda este lugar? Claro, Mr. Churchill - mas é dos melhores - como lhe aprouver. Nesta casa as suas instruções são ordens. Querida Jane, como havemos de nos lembrar de metade dos pratos para contar à avó? Também há sopa? Que beleza! Não devia servir-me tão cedo, mas cheira divinalmente, vou ter de começar.              

2020/06/28



Do we create art in order to defeat, or at least defy, death? To transcend it, to put it in its place? You may take my body, you may take all the squidgy stuff inside my skull where lurks whatever lucidity and imagination I possess, but you cannot take away what I have done with them. Is that our subtext and our motivation? Most probably - though sub specie aeternitatis (or even the view of a millenium or two) it's pretty daft. Those proud lines of Gautier's I was once so attached to - everything passes, except art in its robustness; kings die, but sovereign poetry lasts longer than bronze - now read as adolescent consolation. Tastes change; truths become clichés; whole art forms disappear. Even the greatest art's triumph over death is risibly temporary. A novelist might hope for another generation of readers - two or three if lucky - which may feel like a scorning of death; but it's really just scratching  the wall of the condemned cell. We do it to say: I was here too.

JULIAN BARNES, in Nothing to be Frightened of,
UK 2008


Criamos a arte para derrotar ou, pelo menos, desafiar a morte? Para a transcender, para a pôr no seu lugar? Podes levar o meu corpo, podes levar toda a matéria viscosa que está dentro do meu crânio, onde se escondem a lucidez e a imaginação que eu possa ter, mas não podes levar o que fiz com elas. Esse é o nosso não dito e a nossa motivação? Muito provavelmente, embora sub specie aeternitatis (ou mesmo na perspectiva de um milénio ou dois) seja uma patetice. Os versos orgulhosos de Gautier, de que tanto gostei - tudo passa, excepto a arte e a sua resistência; morrem os reis mas, soberana, a poesia fica, mais forte do que o bronze - hoje parecem consolação de adolescente. Os gostos mudam; as verdades tornam-se lugares-comuns; há formas de arte que desaparecem por inteiro. Até o triunfo da arte sobre a morte é risível, temporário. Um romancista pode esperar mais uma geração de leitores - com sorte, duas ou três - e com isso sentir desdém pela morte; mas, na realidade, não passa de arranhão na parede da cela do condenado. Fazemo-lo para dizer: eu também aqui estive.