2024/07/03

Here they are. Nathan realizes that his mother has been waiting for them out on the porch, when he'd thought she'd be there for him - he, who is her truest romance, the one who pays attention, who respects her privacy of person (she's not a hug-prone mother; Nathan's ok with that). He took an early train today, on his own. Violet still refuses to be assured that trains are safe.

Nathan thought his mother came out onto the porch with him because she knows, without needing to be told, about the ways in which today and the day before and the day to come evacuate him. Because his mother knows in ways no one else does how impossible it's become for him to reenter the orderly passage of time, how he lives in an ongoing series of minutes that arrive and depart but are not quite fully connected to each other, so that a day is a rapid-fire progression of still photographs, with Nathan as their subject. Here he is in a room with Chess and Odin and a blue rabbit. Here he is, turning to face his father's approaching headlights. He's felt, he's hoped, that his mother knows about it or can guess at it in ways no one else can, not even Doctor Missus Doctor, who gets paid to know about the ways in which Nathan has been emptied, has become photographs of himself. He has no language to convey that. He can only hope someone - if not his mother, someone else - will figure it out. He has no faith in Doctor Missus maneiraDoctor, with her Would you say more manner, Doctor Missus Doctor, who does not love him, and who dyes her hair a dead black.

His mother loves him. But she hasn't forgiven him, even if she does her best to act as if she has.

MICHAEL CUNNINGHAM, E.U.A. in 'Day', 2024

Aí estão eles. Nathan percebe que a mãe os esperou no alpendre, e achou que ela estava à espera dele - ele, o seu amor mais verdadeiro, o que lhe dá atenção, o que respeita a sua privacidade (não é mãe de abraços; Nathan não se importa). Hoje apanhou cedo o comboio, sozinho. Violet ainda não quer aceitar que os comboios são seguros.

Nathan pensou que a mãe veio ter com ele ao alpendre porque conhece, sem precisar que lhe digam, de que maneira o dia de hoje e o de ontem e o que há-de vir o esvaziam. Porque a mãe sabe, como mais ninguém, que para ele se tornou impossível retomar a ordenada passagem do tempo, que ele vive numa sucessão contínua de minutos que chegam e partem mas não estão inteiramente ligados entre si, e o dia é uma sequência de fotogramas que tem Nathan como tema. Ali está ele, numa sala com Chess e Odin e um coelho azul. Ali está ele, a voltar-se e a ver os faróis do pai a aproximarem-se. Sentiu, esperou que a mãe soubesse ou conseguisse adivinhar de uma maneira que mais ninguém consegue, nem sequer a Doutora, a Menina Doutora, que é paga para perceber a maneira como Nathan ficou vazio e se transformou em fotografias de si mesmo. Não tem palavras para transmitir aquilo. Só lhe resta esperar que alguém entenda - se não for a mãe, outra pessoa. Não tem fé na Doutora, a Menina Doutora, com aquela entoação Podias explicar? Doutora, a Menina Doutora, que não o ama e que pinta o cabelo de preto tom de defunto.

A mãe ama-o. Mas não lhe perdoou, ainda que faça o possível por parecer que sim.

2024/04/29

Não gostava de ser vista com o amante, mal o visitava, fazia gala obstinada de se desinteressar pelos seus bens, ainda que às vezes lhe aceitasse dinheiro às mãos-cheias e que gastava em coisas momentâneas e que não se fixavam para recordação, como as lautas comidas, os passeios à cidade, as esmolas para o culto. A mãe vivia sempre na sua casota de leitos embutidos na parede e que estava impregnada de cheiro de mar, de esgotos e de peixe. Já tinham acabdo entre elas aquelas solenes e ponderadas conversas: «Mãe, quando eu me casar, o meu homem não deve comer no chão, quero rspeito, mãe...» Às vezes Mercês trazia-lhe café, que a velha aceitava com modo entre sôfrego e reprovativo./>
AGUSTINA BESSA-LUÍS, Portugal/>
in Os Peripatéticos, 1953

2023/10/29

THE DEATH OF CHILDREN
It is the death of children most offends
nature and justice. No use asking why.
What justice is, nobody comprehends.
What punishment can ever make amends?
There’s no pretext, excuse or alibi.
It is the death of children most offends.
Whoever offers arguments pretends
to read fate’s lines. Although we must swear by
what justice is, nobody comprehends
how destiny or chance weaves. Who defends
their motives with fair reasons tells a lie.
It is the death of children most offends.
Death can’t deserve to reap such dividends
from these, who scarcely lived, their parents cry.
What justice is, nobody comprehends.
Bring comfort then, and courage. Strangers, friends,
are we not all parents when children die?
What justice is, nobody comprehends.
It is the death of children most offends.

RICHARD BERENGARTEN, U.K., 2006

A MORTE DAS CRIANÇAS
A morte das crianças é o que mais ofende
justiça e natureza. Inútil perguntar porquê.
O que é justiça, ninguém entende.
Que castigo alguma vez trará a paz?
Não há pretexto, desculpa ou álibi.
A morte das crianças é o que mais ofende.
Quem traz argumentos finge
ler linhas no destino. Devendo embora
proclamar justiça, ninguém entende
o que destino ou sorte tecem. Quem defende
motivos, razões justas, mente.
A morte das crianças é o que mais ofende.
Não merece a morte colher dividendos
pelos que quase não viveram, choro dos pais.
O que é justiça, ninguém entende.
A morte das crianças é o que mais ofende.
Levai conforto, e coragem. Desconhecidos, amigos,
não somos sempre pais quando as crianças morrem?
O que é justiça, ninguém entende.
A morte das crianças é o que mais ofende.

2023/05/16

ilustração de V. Tavares (pormenor)


Of all the Souls that stand create -
I have elected - One -
When Sense from Spirit - files away -
And Subterfuge - is done -
When that which is - and that which was -
Apart - intrinsic - stand -
And this brief Drama in the flesh -
Is shifted - like a Sand -
When Figures show their royal Front -
And Mists - are carved away,
Behold the Atom - I preferred -
To all the lists of Clay!

EMILY DICKINSON, E.U.A.,
in "Poems", 1862


De todas as Almas que foram criadas -
Eu escolhi - Uma -
Quando a Sensatez foge ao Espírito; -
E o Subterfúgio - é feito -
Quando aquilo que é - e aquilo que foi -
Separados - intrínsecos - se erguem -
E este breve Drama da carne -
Se escoa - como Areia -
Quando as Figuras mostram a Fronte real -
E as Brumas - se desfazem,
Fixai o Átomo - que eu preferi -
Às listas todas do Barro!

2023/04/23

My friend and I had a wonderful holiday, dining in four-star restaurants and drinking Loire wines, free, happy and not encumbered by love. I sent Antonia postcards of Chambon and Chenonceaux and bought her wine and truffles with my friend's money. But I heard nothing from her. We were moving too fast and she was a painfully slow writer. For her, all self-expression, save music, came only with diffficulty.
Sated with scenery and cloyed with cream sauces, I arrived back in London at the end of August. It was after two a.m., on a warm, damp night when I turned the key in the lock e tiptoed into the dark hall.

MARY FLANAGAN, UK, in Bad Girls, 1984

Eu e o meu amigo passámos umas férias maravilhosas, a jantar em restaurantes de quatro estrelas e a beber vinhos do Loire, livres, felizes e sem as confusões do amor. Enviei a Antonia postais de Chambon e Chenonceaux e comprei-lhe vinho e trufas com o dinheiro do meu amigo. Mas não tive notícias. Movimentávamo-nos depressa e ela, a escrever, era aflitivamente lenta. À excepção da música, só dificilmente conseguia expressar-se.
Saciada de mudanças de cenário e cansada de molho de natas, voltei a Londres no final de Agosto. Passava das duas da manhã, numa noite quente e húmida, quando dei a volta à chave e entrei em bicos de pés no corredor às escuras.

2022/12/22

L'arbre de Noël que préparait ma tante Plantier réunissait chaque année un grand nombre d'enfants, de parents et d'amis. Il se dressait dans un vestibule formant cage d'escalier et sur lequel ouvraient une première antichambre, un salon et les portes vitrées d'une sorte de jardin d'hiver où l'on avait dressé un buffet. La toilette de l'arbre n'était pas achevée et, le matin de la fête, lendemain de mon arrivée, Alissa, ainsi que me l'avait annoncé ma tante, vint d'assez bonne heure l'aider à accrocher aux branches les ornements, les lumières, les fruits, les friandises et les jouets. J'aurais pris moi-même grand plaisir auprès d'elle à ces soins, mais il fallait laisser ma tante lui parler. Je partis donc sans l'avoir vue et tâchai toute la matinée d'occuper mon inquiétude.

ANDRÉ GIDE, França, in La Porte Étroite, 1909

A árvore de Natal, que minha tia Plantier ornamentava, reunia todos os anos um grande número de crianças, parentes e amigos. Erguia-se no vestíbulo que ocupava o vão da escadaria, para onde davam a primeira antecâmara, um salão e as portas envidraçadas de uma espécie de jardim de Inverno onde fora montado um bufete. O arranjo da árvore não terminara e, na manhã da festa, dia a seguir ao da minha chegada, Alissa, tal como minha tia anunciara, veio muito cedo ajudá-la a prender nos ramos enfeites, luzes, frutos, guloseimas e brinquedos. Teria tido grande prazer em estar com ela nessa tarefa, mas tinha de deixar que minha tia lhe falasse. Por isso saí sem a ver e durante toda a manhã fiz por me ocupar, apesar da inquietação.

2022/10/09

Max Verstappen, bi-campeão mundial de Fórmula 1, 2022

One evening, glass in hand, he was idly following the televised highlights of the Brazilian Grand Prix. He wasn’t much interested in the bland plutocracy of Formula One; but he did like to watch young men taking risks. In that respect, the race was gratifying. Heavy rain had made the track dangerous; pools of standing water sent even former world champions aquaplaning smack into the barriers; the race was stopped twice, and frequently brought under the control of the safety car. Everyone drove cautiously, except for nineteen-year-old Max Verstappen of the Red Bull team. He overtook his way from almost last place to third, making moves his elders and supposed betters declined to dare. The commentators, astonished by this display of skill and guts, sought explanation. And one of them provided it: ‘They say your risk profile doesn’t stabilise until you’re about twenty-five.’ This statement made him attend even more closely. Yes, he thought: a treacherous circuit, visibility reduced by spray to almost zero, others trepidatious while you felt invulnerable, going flat out thanks to a risk profile as yet unstabilised. Yes, he remembered that all too well. It was called being nineteen. And some would crash and some wouldn’t. Verstappen hadn’t. So far, anyway: though he had another six years to go before neurophysiology rendered him entirely sensible.

JULIAN BARNES, UK, in The Only Story, 2018

Uma noite, de copo na mão, seguia ociosamente os destaques televisivos do Grand Prix brasileiro. Não estava muito interessado na plutocracia da Fórmula Um; mas do que gostava era de ver homens novos a arriscar. Nesse sentido a corrida agradava-lhe. A chuva intensa tornara a pista perigosa; poças de água ininterruptas punham até campeões mundiais a planar sobre a água e a embater nas barreiras; a corrida foi interrompida duas vezes e esteve quase sempre sob o controlo do carro de apoio. Todos conduziam com precaução, menos Max Verstappen, dezanove anos, equipa Red Bull. Ultrapassou e passou de quase último a terceiro, com manobras que os mais velhos e supostamente melhores se recusaram a arriscar. Os comentadores, espantados com a demonstração de perícia e garra, procuravam explicação. E um deles apresentou-a: ‘Dizem que a nossa consciência de risco só estabiliza por volta dos vinte e cinco anos.’ Esta afirmação fê-lo olhar ainda com mais atenção. Sim, pensou: um circuito traiçoeiro, visibilidade reduzida quase a zero pelos salpicos, os outros receosos enquanto eu me sentia invulnerável, prego a fundo graças a uma consciência de risco ainda não estabilizada. Sim, lembrava-se bem demais daquilo tudo. Aquilo era ter dezanove anos. E alguns espatifavam-se e outros não. Verstappen não se espatifara. Até agora. Tinha mais seis anos pela frente, antes que a neurofisiologia o tornasse completamente sensato.

2022/09/12

Wild Nights - Wild Nights!
Were I with thee
Wild Nights should be
Our luxury!

Futile - the Winds -
To a Heart in port -
Done with the Compass -
Done with the Chart!

Rowing in Eden -
Ah, the Sea!
Might I but moor - Tonight -
In Thee!

EMILY DICKINSON, EUA, 1861

Noites Loucas - Noites Loucas!
Estivesse eu contigo
E Noites Loucas seriam
O nosso luxo!

Fúteis - os Ventos -
Para um Coração no porto -
Adeus Bússola -
Adeus mapa!

Remar no Paraíso -
Ah, o Mar!
Pudesse eu - esta Noite -
Em Ti ancorar!

2022/07/29

There was something almost carnal in the smile, deeply disturbing to the wife for whom such smiles had been rare in her lifetime and had long since ceased entirely. The wife said, faltering, "It seems that we know each other, dear Emily? Don't we? My grandmother Loomis..." But the wife had no idea what she was saying. A shiver seemed to pass across the poet´s small pale face. Her eyes lifted to the wife's eyes, fleeting as the slash of a razor, playful, or mocking; and soon then the poet rose to carry away the dirtied tea things to the kitchen, where she washed the cups with care, and dried them; and tidied everything up, so the kitchen was spotless. The wife protested clumsily, " But you are a poet Emily! - it seems wrong, for you to work as - " and the poet said, in her whispery voice, "Mistress, to be a 'poet' merely - is not to be." So seeming frail, the petite Emily yet exuded a will steely, obdurate. The wife went away shaken, and moved.

JOYCE CAROL OATES, E.U.A, in 'Wild Nights!', EDickinsonRepliLuxe, 2008

Havia alguma coisa de quase carnal no sorriso, profundamente perturbador para a esposa, a quem durante a vida tais sorrisos haviam sido raros e tinham há muito cessado inteiramente. A esposa disse, hesitante: 'Parece que nos conhecemos, querida Emily! Não é? A minha avó Loomis...' Mas a esposa não fazia ideia do que estava a dizer. Passou na face pequena e pálida da poeta uma sombra de arrepio. Os olhos ergueram-se para os olhos da esposa, fugazes como o golpe de uma lâmina, brincalhões, trocistas; e logo a seguir a poeta levantou-se e levou as coisas sujas do chá para a cozinha, onde lavou cuidadosamente as chávenas e as enxugou; limpou tudo, e a cozinha ficou imaculada. Constrangida, a esposa protestou: 'Mas a Emily é poeta! - parece mal trabalhar como -' e a poeta disse, na sua voz sussurrada: 'Senhora, ser meramente "poeta" - é não ser.' Parecendo assim frágil, a pequenina Emily irradiava uma vontade de aço, obstinada. A esposa foi-se embora abalada, e enternecida.

2022/06/01

Quand il allait au Jardin des Plantes, la vue d'un palmier l'entraînait vers des pays lointains. Ils voyageaient ensemble, au dos des dromadaires, sous le tendelet des éléphants, dans la cabine d'un yacht parmi des archipels bleus, ou côte à côte sur deux mulets à clochettes, qui trébuchent dans les herbes contre des colonnes brisées. Quelquefois, il s'arrêtait au Louvre devant de vieux tableaux; et son amour l'embrassant jusque dans les siècles disparus, il la substituait aux personnages des peintures. Coiffée d'un hennin, elle priait à deux jenoux derrière un vitrage de plomb. Seigneuresse des Castilles ou des Flandres, elle se tenait assise, avec une fraise empesée et un corps de baleines à gros bouillons. Puis elle descendait quelque grand escalier de porphyre, au milieu des sénateurs, sous un dais de plumes d'autruche, dans une robe de brocart. D'autres fois, il la rêvait en pantalon de soie jaune, sur les coussins d'un harem; - et tout ce qui était beau, le scintillement des étoiles, certains airs de musique, l'allure d'une phrase, un contour, l'amenaient à sa pensée d'une façon brusque et insensible.
Quant à essayer d'en faire sa maîtresse, il était sûr que toute tentative serait vaine.

GUSTAVE FLAUBERT, França
in L' Education Sentimentale, 1874

Quando ia ao Jardim Botânico, a visão de uma palmeira atirava-o para países longínquos. Viajavam juntos no dorso de dromedários, sob o pálio de elefantes, na cabine de um iate entre arquipélagos azuis, ou lado a lado em duas mulas com sinos, que tropeçavam nas colunas quebradas sobre a erva. Às vezes parava no Louvre diante de quadros antigos; e como até em séculos esquecidos o seu amor o seguia, ele substituía-a às personagens das pinturas. De coifa pontiaguda, ela rezava de joelhos atrás de um vitral multicor. Senhora de Castela ou da Flandres, aparecia sentada de cabeção engomado e corpete com favos e espartilho. Descia depois uma grande escadaria de pórfiro, entre senadores, sob um dossel de plumas de avestruz, vestida de brocado. De outras vezes sonhava-a em calção de seda amarela, sobre coxins num harém; e tudo o que era belo, a cintilação das estrelas, certas árias musicais, o brilho de uma frase, um esboço, traziam-lha ao pensamento de forma brusca e insensata.
Quanto a tentar torná-la sua amante, tinha a certeza de que qualquer tentativa seria vã.

2022/01/04

Perhaps the ferment was all the stronger in Deronda's mind because he had never had a confidant to whom he could open himself on these delicate subjects. He had always been leaned on instead of being invited to lean. Sometimes he had longed for the sort of friend to whom he might possibly unfold his experience: a young man like himself who sustained a private grief and was not too confident about his own career; speculative enough to understand every moral difficulty, yet socially susceptible, as he himself was, and having every outward sign of equality either in bodily or spiritual wrestling; for he had found it impossible to reciprocate confidences with one who looked up to him. But he had no expectation of meeting the friend he imagined. Deronda's was not one of those quiveringly-poised natures that lend themselves to second sight.

GEORGE ELIOT, UK, in Daniel Deronda, 1876

Talvez o tumulto no espírito de Deronda fosse tanto mais forte quanto não tivera nunca um confidente a quem se abrir sobre assuntos delicados. Servira sempre de apoio, sem ser convidado a apoiar-se. Às vezes ansiara pelo género de amigo a quem pudesse revelar a sua vida; um homem novo como ele, que carregasse o peso de uma secreta mágoa e não estivesse muito seguro do seu percurso pessoal; suficientemente analítico para entender cada dificuldade moral, porém sensível no convívio, tal como ele próprio, e com os sinais externos da coragem nos combates de corpo e espírito; porque sempre julgara impossível trocar confidências com quem o achava superior. Mas não esperava encontrar o amigo imaginado. Deronda não tinha uma natureza vacilante, das que se dão a premonições.

2020/11/11



It was that time

against the backdrop of trees

the russet sky,

the houses built up like half promises on rocks

when I started to get wise. And there was 

drama going on on land.

A thin slither of moon,

wet oil on the ground,

and all the white June flowers.

Your phone rang. You looked at it

and then at me. There was a shadow around

your head. I felt the thing we try not to feel.

It's a new age for loving

now - anything goes,

so no one is allowed to dissolve in public

we rent each other's beds

for weeks and weeks and weeks 

with nothing to show for it at the very end

but dirt underneath our nails.

I am still gasping, even today

for one I treated so badly

who told me they

wished me the very best

in the softest, most devastating way.

YRSA DALEY-WARD, E.U.A., 2020


Foi no tempo, 

contra um fundo de árvores

e céu cor de barro,

casas construídas como meias promessas sobre rochas,

em que eu comecei a ganhar juízo. E em terra

os dramas aconteciam.

Um fino deslizar de lua,

o chão molhado de óleo

e todas as flores brancas de Junho. 

O teu telefone tocou. Olhaste-o,

e depois a mim. Tinhas uma sombra em volta

da cabeça. Senti a coisa que tentamos não sentir.

Agora é uma nova era para

amar - vale tudo

por isso a ninguém é permitido desmoronar em público

alugamos as camas uns dos outros

durante semanas e semanas e semanas

e no fim só temos para mostrar

porcaria debaixo das unhas.

Ainda hoje sufoco

por alguém que tratei tão mal

e me disse que

me desejava o melhor

da maneira mais branda e arrasadora.


 

2020/10/25

WILLIAM BLAKE, gravura em cobre, c. 1789   
 

For a moment the room appeared to darken, as it used to do when he was about to perform some singular experiment, and in the darkness the peacocks upon the doors seemed to glow with a more intense color. I cast off the illusion, which was, I believe, merely caused by memory, and by the twilight of incense, for I would not acknowledge that he could overcome my now mature intellect; and I said: 'Even if I grant that I need a spiritual belief and some form of worship, why should I go to Eleusis and not to Calvary?' He leaned forward and began speaking with a slightly rhytmical intonation, and as he spoke I had to struggle again with the shadow, as of some older night than the night of the sun, which began to dim the light of the candles and to blot out the little gleams upon the corner of picture-frames and on the bronze divinities, and to turn the blue of the incense to a heavy purple, while it left the peacocks to glimmer and glow as though each separate color were a living spirit. I had fallen into a profound dreamlike reverie in which I heard him speaking as at a distance. 'And yet there is no one who communes with only one god,' he was saying, 'and the more a man lives in imagination and in a refined understanding, the more gods does he meet with and talk with, and the more does he come under the power of Roland, who sounded in the Valley of Roncesvalles the last trumpet of the body's will and pleasure; and of Hamlet, who saw them perishing away, and sighed; and of Faust, who looked for them up and down the world and could not find them; and under the power of all those countless divinities who have taken upon themselves spiritual bodies in the minds of the modern poets and romance writers, and under the power of the old divinities, who since the Renaissance have won everything of their ancient worship except the sacrifice of birds and fishes, the fragrance of garlands and the smoke of incense. The many think humanity made these divinities, and that it can unmake them again; but we who have seen them pass in rattling harness, and in soft robes, and heard them speak with articulate voices while we lay in deathlike trance, know that they are always making and unmaking humanity, which is indeed but the trembling of their lips.'

WILLIAM BUTLER YEATS, Irlanda,

in Rosa Alchemica, 1913


Por um momento julguei ver a sala escurecer, como era habitual antes de ele pôr em prática uma experiência singular e, na escuridão, os pavões que cobriam as portas pareceram brilhar com uma cor mais intensa. Rejeitei a ilusão que era, creio, meramente causada pela memória e pela luz fraca do incenso, pois não queria admitir que ele pudesse dominar-me a inteligência - agora, na maturidade. E disse-lhe: 'Ainda que admita precisar de uma crença espiritual e de alguma forma de culto, porque escolheria Elêusis e não o Calvário?' Inclinou-se e começou a falar com uma entoação levemente ritmada e, enquanto falava, tive de voltar a lutar com a sombra de uma noite mais antiga do que a noite solar, que começou a enfraquecer a luz das velas e a apagar os pequenos reflexos nos cantos das molduras e sobre as divindades de bronze e a transformar o azul do incenso em roxo denso; mas deixou os pavões a brilhar, incandescentes, como se cada cor só por si fosse um espírito vivo. Eu caíra em profundo devaneio, como num sonho, e ouvia-o falar como se estivesse longe: 'E no entanto não há ninguém que comungue com um só deus', dizia, 'e quanto mais o homem vive em imaginação e compreensão subtil, maior é o número de deuses que encontra e a quem fala, e mais fica sob o poder de Roland, que fez soar no Vale de Roncesvalles a última trombeta da vontade e do prazer do corpo; e de Hamlet, que os viu perecer e suspirou; e de Fausto, que os procurou pelo mundo inteiro e não os encontrou; e sob o poder de todas as incontáveis divindades, que decidiram pôr seus corpos espirituais na mente dos poetas e romancistas modernos; e sob o poder das velhas divindades que, desde o renascimento, tudo recuperaram do antigo culto, excepto o sacrifício de aves e de peixes, fragrância de grinaldas e fumo de incenso. A maioria pensa que foi a humanidade quem fez tais divindades e que pode voltar a desfazê-las; mas nós, que as vimos passar com estrepitosas armaduras e delicadas vestes, e as ouvimos falar com vozes claras enquanto jazíamos num transe igual ao da morte, sabemos que elas estão sempre a fazer e a desfazer a humanidade, que mais não é do que o frémito dos seus lábios.       


    

2020/09/17


 I don't regret for a single moment having lived for pleasure. I did it to the full, as one should do everything that one does. There was no pleasure I did not experience. I threw the pearl of my soul into a cup of wine. I went down the primrose path to the sound of flutes. I lived on honeycomb. But to have continued the same life would have been wrong because it would have been limiting. I had to pass on. The other half of the garden had its secrets for me also. Of course all this is foreshadowed and prefigured in my books. Some of it is in The Happy Prince, some of it in The Young King, notably in the passage where the bishop says to the kneeling boy, 'Is not He who made misery wiser than thou art?' a phrase which when I wrote it seemed to me little more than a phrase; a great deal of it is hidden away in the note of doom that like a purple thread runs through the texture of Dorian Gray; in The Critic as Artist it is set forth in many colours; in The Soul of Man it is written down, and in letters too easy to read; it is one of the refrains whose recurring motifs make Salome so like a piece of music and bind it together as a ballad; in the prose poem of the man who from the bronze image of the 'Pleasure that liveth for a moment' has to make the image of the 'Sorrow that abideth for ever' it is incarnate. It could not have been otherwise. At every single moment of one's life one is what one is going to be no less than what one has been. Art is a symbol, because man is a symbol. 

OSCAR WILDE, UK
in De Profundis, 1897


Nem por um instante lamento ter vivido para o prazer. Fi-lo plenamente, como se deve fazer tudo aquilo que se faz. Não houve prazer que não experimentasse. Lancei a pérola da minha alma num copo de vinho. Desci o carreiro de malmequeres ao som de flautas. Vivi no jardim das delícias. Mas ter continuado essa vida seria errado, porque me limitaria. Tinha de avançar. A outra metade do jardim também tinha para mim os seus segredos. É claro que tudo isto vem anunciado e antecipado nos meus livros. Uma parte em O Príncipe Feliz, outra em  O Jovem Rei, especialmente na passagem em que o bispo diz ao rapaz ajoelhado 'Não foi Ele que fez a infelicidade mais sábia do que tu?', frase que, quando a escrevi, me pareceu pouco mais do que uma frase; e grande parte está escondida na nota de condenação que, qual fio de púrpura, percorre a trama de Dorian Gray; em O Crítico enquanto Artista apresenta-se com muitas cores; em A Alma Humana vem bem explicado e em caracteres facílimos de ler; é um dos refrãos cujos motivos recorrentes fazem de Salomé uma peça musical e lhe dão a forma de balada; no poema em prosa do homem que da imagem em bronze do 'Prazer que durou um momento' teve de fazer a imagem da 'Mágoa que durou para sempre', corporizou-se. Não podia ser de outra maneira. Em cada momento da nossa vida somos tanto o que seremos como aquilo que fomos. A arte é um símbolo, porque o homem é um símbolo.

2020/08/01

    Everyman's Library, capa com retrato de JANE AUSTEN    de Ozias Humphrey, c. 1792 (óleo sobre      tela, pormenor)


'Two steps, Jane, take care of the two steps. Oh! no, there is but one. Well, I was persuaded there were two. How very odd! I was convinced there were two, and there is but one. I never saw anything equal to the comfort and style - Candles every where. - I was telling you of your grandmamma, Jane, - There was a little disappointment. - The baked apples and biscuits, excellent in their way, you know; but there was a delicate fricassee of sweetbread and some asparagus brought in at first, and good Mr. Woodhouse, not thinking the asparagus quite boiled enough, sent it all out again. Now there is nothing grandmamma loves better than sweetbread and asparagus - so she was rather disappointed, but we agreed we would not speak of it to any body, for fear of its getting round to dear Miss Woodhouse, who would be so very much concerned! - Well, this is brilliant! I am all amazement! could not have supposed any thing! - Such elegance and profusion! - I have seen nothing like it since - Well, where shall we sit? where shall we sit? Any where, so that Jane is not in a draught. Where I sit is of no consequence. Oh! do you recommend this side? - Well, I am sure, Mr. Churchill - only it seems too good - but just as you please. What you direct in this house cannot be wrong. Dear Jane, how shall we ever recollect half the dishes for grandmamma? Soup too! Bless me! I should not be helped so soon, but it smells most excellent, and I cannot help beginning.'

JANE AUSTEN, UK,
Emma, 1815


Dois degraus, Jane, atenção aos dois degraus. Ah, é só um. Pensava que eram dois. Estranho! Pensava que eram dois, e é só um. Nunca vi nada igual, o conforto, o estilo - velas em todo o lado. Dizia-lhe da avó, Jane, - houve alguma decepção - os biscoitos e as maçãs assadas, primorosos, já sabe; mas primeiro trouxeram espargos e um delicado fricassé de fígados, e Mr. Woodhouse, coitado, pensando que os espargos não estavam no ponto, mandou-os para trás. Ora não há nada que a avó mais adore do que fígados e espargos - por isso ficou decepcionada, mas não quisemos dizer nada a ninguém, com medo que chegasse aos ouvidos da querida Miss Woodhouse e a deixasse consternada! - Ah, magnífico! Estou maravilhada! Não supunha isto! A elegância, a variedade! Não via nada assim desde... Bem, onde nos sentamos? Onde nos sentamos? Em qualquer lado, desde que a Jane não apanhe correntes de ar. Eu fico em qualquer lado, isso não importa. Recomenda este lugar? Claro, Mr. Churchill - mas é dos melhores - como lhe aprouver. Nesta casa as suas instruções são ordens. Querida Jane, como havemos de nos lembrar de metade dos pratos para contar à avó? Também há sopa? Que beleza! Não devia servir-me tão cedo, mas cheira divinalmente, vou ter de começar.              

2020/06/28



Do we create art in order to defeat, or at least defy, death? To transcend it, to put it in its place? You may take my body, you may take all the squidgy stuff inside my skull where lurks whatever lucidity and imagination I possess, but you cannot take away what I have done with them. Is that our subtext and our motivation? Most probably - though sub specie aeternitatis (or even the view of a millenium or two) it's pretty daft. Those proud lines of Gautier's I was once so attached to - everything passes, except art in its robustness; kings die, but sovereign poetry lasts longer than bronze - now read as adolescent consolation. Tastes change; truths become clichés; whole art forms disappear. Even the greatest art's triumph over death is risibly temporary. A novelist might hope for another generation of readers - two or three if lucky - which may feel like a scorning of death; but it's really just scratching  the wall of the condemned cell. We do it to say: I was here too.

JULIAN BARNES, in Nothing to be Frightened of,
UK 2008


Criamos a arte para derrotar ou, pelo menos, desafiar a morte? Para a transcender, para a pôr no seu lugar? Podes levar o meu corpo, podes levar toda a matéria viscosa que está dentro do meu crânio, onde se escondem a lucidez e a imaginação que eu possa ter, mas não podes levar o que fiz com elas. Esse é o nosso não dito e a nossa motivação? Muito provavelmente, embora sub specie aeternitatis (ou mesmo na perspectiva de um milénio ou dois) seja uma patetice. Os versos orgulhosos de Gautier, de que tanto gostei - tudo passa, excepto a arte e a sua resistência; morrem os reis mas, soberana, a poesia fica, mais forte do que o bronze - hoje parecem consolação de adolescente. Os gostos mudam; as verdades tornam-se lugares-comuns; há formas de arte que desaparecem por inteiro. Até o triunfo da arte sobre a morte é risível, temporário. Um romancista pode esperar mais uma geração de leitores - com sorte, duas ou três - e com isso sentir desdém pela morte; mas, na realidade, não passa de arranhão na parede da cela do condenado. Fazemo-lo para dizer: eu também aqui estive.

2019/08/12


Comme pour la distraire, il reproduisait le tic-tac du tournebroche, l'appel aigu d'un vendeur de poisson, la scie du menuisier qui logeait en face; et, aux coups de la sonnette, imitait Mme Aubain, - «Félicité! la porte! la porte!»
Ils avaient des dialogues, lui, debitant à satiété les phrases de son répertoire, et elle, y répondant par des mots sans plus de suite, mais où son coeur s'épanchait. Loulou, dans son isolement, était presque un fils, un amoureux. Il escaladait ses doigts, mordillait ses lèvres, se cramponnait à son fichu; et, comme elle penchait son front en branlant la tête à la manière des nourrices, les grandes ailes du bonnet et les ailes de l'oiseau frémissaient ensemble.
Quand des nuages s'amoncelaient et que le tonnerre grondait, il poussait des cris, se rappelant peut-être les ondées de ses forêts natales.

GUSTAVE FLAUBERT, França, 
in Un Coeur Simple, 1877 

Como que para a distrair, ele reproduzia a cadência da manivela no espeto, o pregão estridente do peixeiro, a serra do marceneiro que morava em frente; e ao toque da campainha, imitava Madame Aubain  - «Félicité! a porta! a porta!»
Tinham diálogos em que ele debitava sem cessar as frases do seu repertório e ela lhe respondia com palavras algo inconsequentes, mas onde o coração se derramava. No seu isolamento, Lulu era quase um filho, um enamorado. Trepava-lhe pelos dedos, mordiscava-lhe os lábios, agarrava-se-lhe ao carrapito; e se ela inclinava a fronte e meneava a cabeça como as amas de leite, as grandes abas da touca e as asas do papagaio estremeciam juntas.
Quando as nuvens se acumulavam e o trovão rugia, ele dava gritos, quem sabe se ao relembrar o marulhar das florestas natais.

2019/07/14


São hoje seis dias corridos do mês de Julho de 1866.
E eu tenho frio.
Estou na aldeia. A chuva estraleja nas vidraças e o vento assobia nos vigamentos. Os cabeços dos montes escondem-se nas névoas que vêm descendo, como em Janeiro, e se desfazem em aguaceiros glaciais. Agora deponho a pena para espirrar. Anuncia-se-me a décima quarta bronquite desta quadra de zéfiros, rouxinóis e flores.
Aqui estou, pois, numa terra onde não há estradas, nem gente, nem Verão. Moscas há mais do que as da praga. Eis-me constituído um faraó desta canalha.

CAMILO CASTELO BRANCO, Portugal
"Cousas Leves e Pesadas", 1866

2019/06/09

It is to be remarked that the process of analysing a language is facilitated if it is possible to use for the classificaion of its forms an artificial system of symbols whose structure is known. The best known example of such symbolism is the so-called system of logistic which was employed by Russell and Whitehead in their Principia Mathematica. But it is not necessary that the language in which analysis is carried out should be different from the language analysed. If it were, we should be obliged to suppose, as Russell once suggested, "that every language has a structure concerning which, in the language, nothing can be said, but that there may be another language dealing with the structure of the first language, and having itself a new structure, and that to this hierarchy of languages there may be no limit." This was written presumably in the belief that an attempt to refer to the structure of a language in the language itself would lead to the occurrence of logical paradoxes. But Carnap, by actually carrying out.such an analysis, has subsequently shown that a language can without self-contradiction be used in the analysis of itself.

ALFRED JULES AYER, UK
in Language, Truth and Logic, 1936

É de notar que o processo de analisar uma língua é facilitado se, para classificar as suas formas, pudermos usar um sistema artificial de símbolos com uma estrutura conhecida. O melhor exemplo desse simbolismo é o chamado sistema logístico, que foi aplicado por Russell e Whitehead nos Principia Mathematica. Mas não é necessário que a língua que leva a cabo a análise seja diferente da língua analisada. Se o fosse, seríamos obrigados a supor, como Russell chegou a sugerir, "que todas as línguas têm uma estrutura em relação à qual, dentro da língua, nada pode ser dito, mas pode haver outra língua que se ocupe da estrutura da primeira e que tenha ela própria uma estrutura nova e, para essa hierarquia das línguas, não pode haver limite." Supostamente, isto foi escrito acreditando que a tentativa de nos referirmos à estrutura de uma língua dentro da própria língua levaria à ocorrência de paradoxos lógicos. Mas, ao executar essa análise, Carnap mostrou que uma língua pode, sem se contradizer, ser usada na análise de si própria.

2019/04/04

        
       My mother was behind the wheel in her pink dressing gown over her pink nightdress. I didn´t check to see if she was driving in bedroom slippers. She was halfway down a cigarette, and before putting the car into gear, flicked the glowing stub out on to the Macleod's driveway.
         I got in, and as we drove my mood switched from pert indifference to furious humiliation. An English silence – one in which all the unspoken words are perfectly understood by both parties – prevailed. I got into my bed and wept. The matter was never referred to again.

JULIAN BARNES, UK
in The Only Story, 2018
                                                                   
       A minha mãe estava ao volante, com o roupão cor-de-rosa por cima da camisa de noite cor-de-rosa. Não olhei para ver se conduzia com os chinelos de quarto. Já fumara meio cigarro e, antes de meter a mudança, atirou a beata acesa para a entrada dos Macleod. 
       Entrei e, pelo caminho, a minha disposição passou de indiferença atrevida a humilhação raivosa. Instalou-se um silêncio inglês – aquele em que todas as palavras não ditas são perfeitamente entendidas por ambas as partes. Fui para a minha cama e chorei. O assunto nunca mais foi mencionado.


2019/02/02

                                                             Ana Cardoso, Turnips, (pormenor) 2013  

Know me come eat with me. Royal sturgeon. High sheriff, Coffey, the butcher, right to venisons of the forest from his ex. Send him back the half of a cow. Spread I saw down in the Master of the Rolls' kitchen area. Whitehatted chef like a rabi. Combustible duck. Curly cabbage à la duchesse de Parme. Just as well to write it on the bill of fare so you can know what you've eaten too many drugs spoil the broth. I know it myself. Dosing it with Edwards' desiccated soup. Geese stuffed silly for them. Lobsters boiled alive. Do ptake some ptarmigan. Wouldn't mind being a waiter in a swell hotel. Tips, evening dress, halfnaked ladies. May I tempt you to a little more filleted lemon sole, miss Dubedat? Yes, do bedad. And she did bedad. Huguenot name I expect that. A miss Dubedat lived in Killiney I remember. Du, de la, French.

JAMES JOYCE, Irlanda,
in Ulysses, 1922

Conhece-me anda comer comigo. Esturjão real. Xerife-mor, Coffey, o talhante, com direito aos veados da floresta da ex-mulher. Devolver-lhe a metade de uma vaca. Folha de jornal que vi lá em baixo, na zona da cozinha do Patrão do Rolls. Chef de chapéu branco qual rabi. Pato combustível. Couve frisada à la duchesse de Parme. É bom escreverem na ementa para podermos saber o que comemos drogas a mais estragam o caldo. Sei por mim. A tomar pequenas doses com a sopa ressequida do Edward. Para eles gansos empanturrados até cair. Lagostas cozidas vivas. Ptoma o ptarmesão. Não me importava de ser criado de mesa num hotel chique. Gorjetas, traje de noite, senhoras seminuas. Posso tentá-la com mais um filetezinho de linguado com limão, miss Dubedat? Sim, dá bedade. E bedadeu mesmo. Nome huguenote, suponho. Lembro-me que vivia em Killiney uma miss Dubedat. Du, de la, francesa.

2018/09/06



Although he was yet to start his third year at university, Keith (rather unattractively, some may feel) had written to the Literary Supplement earlier in the summer and asked to be given a book to review - on trial. As a consequence, he had before him a heap of grey fluff and a loaf-sized monograph called Antinomianism in D. H. Lawrence by Marvin M. Meadowbrook (Rhode Island University Press). The stipulated length was a thousand words and the deadline was four days away. Lily said:
   'Ring them up and tell them it's impossible.'
   'I can't do that. You've got to try. You've got to at least try.'
   'A mere student,' said Gloria, 'and already you're trolling for work. Oh, very ambitious.'
   'That's what we're all meant to be, isn't it? said Scheherazade, as she stood and then entered the long corridor.
   Keith looked up. Scheherazade entered the long corridor, which was aflame with sunset.

MARTIN AMIS, U.K., in The Pregnant Widow, 2010

Apesar de ainda nem ter iniciado o terceiro ano da universidade, Keith (de um modo pouco interessante, acharão alguns) escrevera ao Literary Supplement no princípio do Verão e pedira que lhe dessem um livro para comentar - à experiência. Daí resultara que tinha diante dele um monte de folhas cinzentas e uma monografia do tamanho de um pão de quilo, chamada Antinomianism in D. H. Lawrence, de Marvin M. Meadowbrook (Rhode Island University Press). Mil palavras era o tamanho estipulado e o prazo de entrega daí a quatro dias. Lily disse:
   - Telefona-lhes e diz que é impossível.
   - Não posso fazer isso. Uma pessoa tem de tentar. Tem ao menos de tentar.
   - Um simples estudante,' disse Gloria, 'e já andas a desencantar trabalho. Hum, muito ambicioso.'
   - É o que todos temos de ser, não é?' disse Scheherazade, que estava de pé e depois seguiu pelo longo corredor.
   Keith ergueu os olhos. Scheherazade seguia pelo longo corredor que o crepúsculo incendiara.
 



2017/07/08


Drawing the curtains back and opening windows
Every morning now, she feels her years
Grow less and less. Time puts no burden on
Her now she does not need to measure it.
It is acceptance she arranges 
And her own life she places in the vase.

ELIZABETH JENNINGS, U.K.
in Old Woman, 1958

Agora, ao afastar cortinas e ao abrir as janelas 
De manhã, ela sente que os anos
Encolhem cada vez mais. Agora o tempo não
Lhe pesa não precisa de o medir.
É aceitação o que põe
E a própria vida que dispõe na jarra.

2017/03/21


Following
the solitude of distances,
a coarsely wound thread
of sidewalk stretched among blocks

Regular as playthings.

The nature of your work
leaves full days discarded
at the entrance to the train.

ERIN J. WATSON, in 'No Experiences', 2012

(each poem contains one @Horse_ebooks tweet. You can find them linked from noexperiences.com)


Seguindo
a solidão das distâncias,
a travessia do passeio agreste e tortuoso
alonga-se entre quarteirões

Alinhados como brinquedos.

A natureza do teu trabalho
deita fora dias inteiros
quando entras para o comboio.

(cada poema contém um tweet de @Horse_ebooks. Os links encontram-se em noexperiences.com)

2017/02/05


But if sleep it was, of what nature, we can scarcely refrain from asking, are such sleeps as these? Are they remedial measures - trances in which the most galling memories, events that seem likely to cripple life for ever, are brushed with a dark wing which rubs their harshness off and gilds them, even the ugliest and the basest, with a lustre, an incandescence? Has the anger of death to be laid on the tumult of life from time to time lest it rend us asunder? Are we so made that we have to take death in small doses daily or we could not go on with the business of living? And then what strange powers are those that penetrate our most secret ways and change our most treasured possessions without our willing it?

VIRGINIA WOOLF, UK,
in Orlando, 1928

Mas se era sono, qual a natureza, pois não conseguimos deixar de perguntar, dos sonos como esse? Serão medidas terapêuticas - transes nos quais as memórias mais cruas, de acontecimentos que parecem capazes de deformar a vida para sempre, são varridas por uma asa obscura que lhes tira aspereza e os doura, até os mais vis e feios, com um lustro, uma incandescência? A fúria da morte tem de cair sobre o tumulto da vida, de quando em quando, para que ele não nos desfaça? Somos feitos de tal maneira que precisamos de tomar a morte em pequenas doses diárias, sem o que não conseguiríamos levar por diante a tarefa de viver? E também que poderes estranhos são esses que penetram os nossos modos mais secretos e transformam o que de mais precioso possuímos contra a nossa vontade?

2016/07/04


Of the things we fashioned for them that they might be comforted, dawn is the one that works. When darkness sifts from the air like fine soot and light spreads slowly out of the east then all but the most wretched of humankind rally. It is a spectacle we enjoy immortals, this minor daily resurrection, we will often gather at the ramparts of the clouds and gaze upon them, our little ones, as they bestir themselves to welcome the new day. What a silence falls upon us then, the sad silence of our envy. Many of them sleep on, of course, careless of our cousin's charming Aurora matutinal trick, but there are always the insomniacs, the restless ill, the lovelorn solitary tossing on their beds, or just the early-risers, the busy ones, with their knee-bends and their cold showers and their fussy little cups of black ambrosia. Yes, all who witness it greet the dawn with joy, more or less, except of course the condemned man, for whom first light will be the last, on earth.

JOHN BANVILLE, Irlanda,
in The Infinities, 2009


Das coisas que concebemos para poder confortá-los, o amanhecer é a que dá efeito. Quando a escuridão se separa do ar, fina como fuligem branda e a luz sai de leste e se espraia lentamente, então toda a espécie humana, com excepção dos mais desgraçados, recupera. É um espectáculo que nós, imortais, apreciamos, essa pequena ressurreição diária; quase sempre nos juntamos nos parapeitos das nuvens e fitamos lá em baixo os nossos petizes, enquanto eles se alvoroçam para acolher o novo dia. Abate-se então sobre nós um silêncio... o silêncio triste da inveja. Muitos deles ainda dormem, é claro, indiferentes ao fascinante truque matutino da nossa prima Aurora, mas há sempre os insones, os doentes agitados, os infelizes no amor, às voltas em camas solitárias, ou os simples madrugadores, atarefados com as flexões e os duches frios e as chavenazinhas extravagantes de ambrósia negra. Sim, todos os que vêem o amanhecer saúdam-no com alegria maior ou menor, excepto obviamente o condenado, para quem a primeira luz será última, na Terra.

2016/06/12

                                     

Mark this farther and remember. The end comes suddenly. Enter that antechamber of birth where the studious are assembled and note their faces. Nothing, as it seems, there of rash or violent. Quietude of custody rather, befitting their station in that house, the vigilant watch of shepherds and of angels about a crib in Bethlehem of Juda long ago. But as before the lightning the serried stormclouds, heavy with preponderant excess of moisture, in swollen masses turgidly distended, compass earth and sky in one vast slumber, impending above parched field and drowsy oxen and blighted growth of shrub and verdure till in an instant a flash rives their centres and with the reverberation of the thunder the cloudburst pours its torrent, so and not otherwise was the transformation, violent and instantaneous, upon the utterance of the Word.

JAMES JOYCE, Irlanda
in Ulysses, 1922


Nota mais isto e lembra-te. O fim vem de repente. Entra nessa antecâmara do nascimento onde os estudiosos se reúnem e repara nos rostos deles. Nada, como se afigura, de apressado ou violento. Antes quietude protectora, própria do seu estatuto na casa, guarda vigilante de pastores e de anjos a um berço em Belém de Judá há muito tempo. Mas como dantes o relâmpago as compactas nuvens de tormenta, carregadas do excesso preponderante de humidade, em massas dilatadas, túrgidas, inchadas, abarcam céu e terra numa única e vasta sonolência, iminentes sobre um campo ressequido e bois inertes e massa arrasada de arbustos e verdura até que num instante um clarão lhes fende os centros e com a reverberação do trovão a carga de água solta a torrente, assim e não de outro modo se deu a transformação, súbita e violenta, ao ser pronunciada a Palavra.


2016/06/07


Renovemos o nó, por mim desfeito,
Que eu já maldigo o tempo desgraçado,
Em que a teus olhos não vivi sujeito;
Concede-me outra vez o antigo agrado;
Que mais queres? Eu choro, e no meu peito...
O punhal do remorso está cravado.


MANUEL MARIA BARBOSA du BOCAGE, Portugal
in Soneto 23 (1799)

2016/05/15


Now, on this first Sunday of sunshine
we make this pilgrimage to be where
grass and bushes show the season in.

There is blossom there: the white sort 
and the red; dogs; and by the lake one duck
treads upon another for our pleasure.

There is movement: of birds behind leaves;
worms beneath the earth; and families
which were unrecognizable before Lowry.

We are not aware of how we fit into
the scene; after an hour we feel boredom, take
a last look at the trodden duck, and go away.

EDWIN BROCK, UK, An Idyll,1959



Hoje, neste primeiro domingo de sol
fazemos esta peregrinação para estar onde
erva e arbustos mostram a estação que chegou.

Há ali flores: umas brancas
e encarnadas; cães; e ao pé do lago um pato
monta outro para nos entreter.

Há movimento: de pássaros atrás de folhas;
bichos debaixo da terra; e famílias
que antes de Lowry ninguém reconheceria.

Não nos damos conta de como encaixamos
na cena; ao fim de uma hora estamos fartos, deitamos
um último olhar ao pato amassado, e vamo-nos embora.

2016/04/28


Registo três expressões cujo significado desconhecia. Obras mortas: parte do casco de uma embarcação que não está submersa; Obras vivas: parte submersa do casco de uma embarcação; Linha de água: linha que separa as obras mortas das obras vivas.
A linguagem náutica, porque lida com a vida e a morte, é extremamente precisa. Talvez por isso seja também extremamente poética.

ANA CRISTINA LEONARDO, Portugal
in "Diário do Farol A Ilha, a Cadela e Eu", 2016

2016/04/07


And so he and Nina met, and they became lovers, but he was still trying to win Tanya back from her husband, and then Tanya fell pregnant, and then he and Nina fixed a day for their wedding, but at the last minute he couldn’t face it so failed to turn up and ran away and hid, but still they persevered and a few months later they married, and then Nina took a lover, and they decided their problems were such that they should separate and divorce, and then he took a lover, and they separated and put in the papers for a divorce, but by the time the divorce came through they realised they had made a mistake and so six weeks after the divorce they remarried, but still they had not resolved their troubles. And in the middle of it all he wrote to his lover Yelena, ‘I am very weakwilled and do not know if I will be able to achieve happiness.’

JULIAN BARNES, UK, in The Noise of Time, 2015


E então ele e Nina conheceram-se, e tornaram-se amantes, mas ele continuava a tentar reconquistar Tanya ao marido, e foi então que Tanya ficou grávida, e depois ele e Nina marcaram um dia para o casamento, mas à última hora não foi capaz e por isso não apareceu, fugiu e escondeu-se, mas ainda assim persistiram e daí a uns meses casaram, e depois Nina arranjou um amante e concluíram que os problemas eram tantos que deviam separar-se e tratar do divórcio, e ele então arranjou uma amante e separaram-se e meteram os papéis para o divórcio, mas quando o divórcio saiu viram que tinham cometido um erro e assim, seis semanas após o divórcio voltaram a casar, mas ainda não tinham resolvido os problemas. E no meio disto tudo ele escreveu à sua amante Yelena: «Tenho muito pouca força de vontade e não sei se conseguirei alcançar a felicidade.»

2016/03/11


You are so civilized, so alert
In your tunnel, arching the drilled brain;
So dexterous in control
Of the tricky signals, the obvious gain.
I am outside, a truant soul,
Deep in the Word, stung by the dirt
Of primal clues which you disdain.

JACK CLEMO, U.K. in Outsider, 1958


És tão civilizado, tão alerta
No teu túnel, na malícia do cérebro amestrado;
Tão hábil a controlar
Os sinais ardilosos, o proveito óbvio.
Eu estou cá fora, alma prevaricadora,
Absorta na Palavra, ferida pela imundície
Das pistas primais que tu desdenhas.



2016/01/13


Les femmes connaissent leur arme. Il n´était pas necessaire d'apprendre à Suzanne qu'elle était devenue une force redoutable et charmante... Quand elle retrouva sa chambre, les deux tilleuls, le frêne, les glycines, les roses, les glaïeuls, les merles, les rouge-gorges, fils de ceux d'antan, les moineaux et les colombes, après un moment de mélancolie - souvenir de sa servitude - ele eut un grand éclair de joie...

J. H. ROSNY, França,
in La Jeune Vampire, 1820

As mulheres conhecem as suas armas. Não era necessário informar Suzanne de que se tornara uma força temível e encantadora... Quando reencontrou o seu quarto, as duas tílias, o freixo, as glicínias, as rosas, os gladíolos, os melros, os pintarroxos, filhos dos de outrora, os pardais e as pombas após um momento de melancolia - lembrança da sua servidão - teve uma grande explosão de alegria...

2016/01/01

 
 

E no meio de tantos perigos, constantes e flagrantes, era necessário comer! Ah! Comer - que portentosa empresa para nossos Pais veneráveis! Sobretudo desde que Adão (e depois Eva, por Adão iniciada) tendo provado os deleites fatais da carne, já não encontravam sabor, nem fartura, nem decência, nos frutos, nas raízes, e nos bagos do tempo da sua Animalidade. Certamente, as boas carnes não faltavam no Paraíso. Delicioso seria o salmão primitivo - mas nadava alegremente nas águas rápidas. Saborosa seria a galinhola, ou o faisão rutilante, nutridos com os grãos que o Criador considerara bons - mas voavam nos céus, em triunfal segurança. O coelho, a lebre - que fugas ligeiras no mato cheiroso!... E nosso Pai, nesses dias cândidos, não possuía o anzol nem a seta. Por isso, sem cessar rondava em torno das lagoas, nas ribas do mar, onde casualmente encalhava, boiando,  algum cetáceo morto. Mas esses achados de abundância eram raros - e o triste casal humano, nas suas marchas famintas pela borda das águas, só conquistava, aqui e além, na rocha ou na areia revolta, algum feio caranguejo em cuja dura casca os seus beiços se esgaçavam. Essas solidões marinhas andavam também infestadas por bandos de feras esperando, como Adão, que a vaga rolasse os peixes vencidos em borrasca ou batalha. E quantas vezes, nossos Pais, já com a garra cravada numa posta de foca ou golfinho, fugiam desconsoladamente, sentindo o passo fofo do horrendo espeleu, ou o bafo dos ursos brancos, bamboleando pelo branco areal, sob a branca indiferença da Lua!

JOSÉ MARIA EÇA DE QUEIRÓS, Portugal,
em  Adão e Eva no Paraíso, "Contos", 1897

2015/11/15


Quand nous marchons seuls dans les bois, sa main passée autour de ma taille, la mienne sur son épaule, son corps tenant au mien, nos têtes se touchant, nous allons d'un pas égal, par un mouvement uniforme et si doux, si bien le même, que, pour des gens qui nous verraient passer, nous paraîtrions un même être glissant sur le sable des allées, à la façon des immortels d'Homère. Cette harmonie est dans le désir, dans la pensée, dans la parole. Quelquefois, sous la feuillée encore humide d'une pluie passagère, alors qu'au soir les herbes sont d'un vert lustré par l'eau, nous avons fait des promenades entières sans nous dire un seul mot, écoutant le bruit des gouttes qui tombaient, jouissant des couleurs rouges que le couchant étalait aux cimes ou broyait sur les écorces grises.
...................................................................
Et nous rentrons toujours plus amoureux l'un de l'autre. Cet amour entre deux époux semblerait une insulte à la société dans Paris. Il faut s'y livrer comme des amants, au fond des bois.

H. de BALZAC, França,
in Mémoires de Deux Jeunes Mariées, 1841


Quando caminhamos sozinhos pelos bosques, a mão dele à volta da minha cintura, a minha no ombro dele, o seu corpo junto ao meu e as nossas cabeças unidas, seguimos com passo igual, num movimento uniforme e tão suave, tão idêntico, que, para pessoas que nos vissem passar, pareceríamos um mesmo ser a deslizar no saibro dos carreiros, à maneira dos imortais de Homero. Esta harmonia está no desejo, no pensamento, na palavra. Por vezes, sob a folhagem ainda húmida após uma chuva passageira, quando ao entardecer as ervas são de um verde polido pela água, nós já demos voltas e voltas sem dizer uma única palavra, escutando o som das gotas que caíam, apreciando o vermelho das cores que o poente estendia nos cumes ou juntava aos troncos cinzentos.
...................................................................
E voltamos sempre mais apaixonados um pelo outro. Este amor entre esposos pareceria um insulto à sociedade, em Paris. Temos de nos entregar a ele como amantes, embrenhando-nos nos bosques.