2015/05/18

 



que é
como quem diz: a multidão de palavras
todas elas esquerdas como se escreve,
e há o impulso de apertar a mão rara com a sua rosa
                                                              penta tatuada
- topas?
(tu que não topas nunca nada)
- vai-te lá embora
(tu que nem de dia nem de noite te vais embora)
- desampara-me a loja
(tu que não me amparas nunca
profunda outra carne humana)

HERBERTO HELDER, Portugal,
em Poemas Canhotos, 2015

2015/05/08

                          VALÉRIE ROUZEAU, Prix Apollinaire 2015    
                                 
Nous n'irons plus aux champignons
le brouillard a tout mangé les chèvres
blanches et nos paniers.
Nos n'irons pas non plus dans les
cités énormes qui sont des baleines
grises très bien organisées où nos coeurs
se perdraient.
Ni au cinéma ni au cirque, ni au café-concert
ni aux courses cyclistes.
Nous n'irons pas nous n'irons plus
pas plus que nous n'irons que nous ne
rirons pas que nous ne rirons plus que
nous ne rirons ronds.

VALÉRIE ROUZEAU, França,
in Patiences, 1994


Já não iremos aos cogumelos
o nevoeiro comeu tudo as cabras
brancas e os nossos cestos.
Também já não iremos às
cidades enormes que são baleias
cinzentas muito bem organizadas onde os nossos corações
se perderiam.
Nem ao cinema nem ao circo, nem ao café-concerto
nem às corridas de ciclistas.
Não iremos já não iremos
e também não
riremos já não riremos
nem a rir nos perderemos.

2015/05/06

                           WILLIAM CLIFF, Prix GONCOURT 2015

à mon retour d’Amérique tu vis
venir à mes tempes des mèches blanches
« William tu n’as guère changé » me dis-
tu « sauf ces mèches blanches sur tes tempes »
mon voyage au-delà de l’écumante
mer Atlantique à rechercher ta trace
fut-il tant éprouvant ? ça me tracasse
très peu cette blancheur de mes cheveux
qu’elle soit blanche ou noire ma tignasse
m’importe peu car c’est Toi que je veux

WILLIAM CLIFF, Bélgica,
in Autobiographie, 2009


no meu regresso da América, viste
aparecer nas minhas têmporas uns cabelos brancos
«William não mudaste nada» disseste
«para além desses cabelos brancos nas têmporas»
a minha viagem para lá da espuma
do Atlântico a procurar o teu rasto
foi assim tão tormentosa? incomoda-me
muito pouco o branco dos meus cabelos
que a minha cabeleira seja branca ou negra
importa-me pouco porque é a Ti que eu quero

2015/05/04



Venus her Myrtle, Phoebus has his bays;
Tea both excels, which she vouchsafes to praise.
The best of Queens, the best of herbs, we owe
To that bold nation which the way did show
To the fair region where the sun doth rise,
Whose rich productions we so justly prize.
The Muse's friend, tea does our fancy aid,
Regress those vapours which the head invade,
And keep the palace of the soul serene,
Fit on her birthday to salute the Queen.

EDMUND WALLER, U.K.,
no 25º aniversário de Catarina de Bragança, 25.11.1663



Vénus com a murta e Febo com o loureiro;
A ambos suplanta o chá, que ela se digna louvar.
A melhor Rainha, a melhor planta, devemo-las
À intrépida nação que abriu caminho
Até às belas regiões onde o sol nasce,
E cuja rica produção tão justamente apreciamos.
Amigo das musas, o chá anima a nossa fantasia,
Desfaz as névoas que a cabeça invadem
E mantém sereno o palácio da alma,
Pronto a saudar a Rainha no seu dia de anos.

2015/05/03


A caseira tinha um filho pequeno chamado Artaxerxes. O nome arrevesado punha-o doido, e tornou-se, além disso, muito mau. Todos se espantavam de ele se chamar assim; e tudo era culpa dum padrinho rico que sabia muito de História antiga.
- Xerxes - dizia a mãe -, vai apanhar erva para os coelhos. - Ou então gritava do fundo do campo: - Xerxes... Xerxes, anda cá nino...
Nino queria dizer menino. E perro queria dizer zangado. A mãe de Xerxes, a senhora Teodora, estava quase sempre perra. Também tinha duas filhas, bonitas como só visto. Os cabelos brilhavam ao sol, ainda que tivessem em cima uma boa camada de cinza da lareira. Emília achava-as vaidosas e namoradeiras, mas Lourença pensava que elas tinham mais razão para isso do que Marta. E Marta não largava o espelho todo o santo dia. Isto do santo dia foi coisa que Lourença nunca percebeu. Quando a mãe se aborrecia com uma criada, dizia: «Não faz nada todo o santo dia.» E tomava um ar mortificado.

AGUSTINA BESSA-LUÍS, Portugal,
em Dentes de Rato, 2012