2015/03/24

   
para "Os Passos em Volta" de HERBERTO HELDER, desenhos de ANA CARDOSO, 1997 (pormenor)    

O barulho do mar e do vento. A ideia da montanha impraticável. A terra arenosa por ali adiante. E a solidão. E, sobretudo, saber que já não pode haver qualquer espécie de medo. Então fecharei todas as portas da casa, a porta para fora e as portas dos quartos entre si. Ficarei no quarto sem soalho e deitar-me-ei no chão. Hei-de ouvir o mar e o vento, e hei-de saber que a montanha está atrás de mim, poderosa e só. Poderei ouvir também o sussurro da terra húmida debaixo do meu corpo. Encostarei a cara a esta terra profundíssima. Até que morrerei.

HERBERTO HELDER, Portugal,
em Os Passos em Volta, 1963

2015/03/17


I on the other hand believe that poetry and romance cannot be made by the most conscientious study of famous moments and of the thoughts and feelings of others, but only by looking into that little, infinite, faltering, eternal flame that we call ourselves. If a writer wishes to interest a certain people among whom he has grown up, or fancies he has a duty towards them, he may choose for the symbols of his art their legends, their history, their beliefs, their opinions, because he has a right to choose among things less than himself, but he cannot choose among the substances of art. So far, however, as this book is visionary it is Irish, for Ireland which is still predominantly Celtic has preserved with
some less excellent things a gift of vision, which has died out among more hurried and more suc-
cessful nations: no shining candelabra have prevented us from looking into the darkness, and when one looks into the darkness there is always something there.

W. B. YEATS, Irlanda,
na dedicatória de Rosa Alchemica a George Russell (A. E.), em Londres, 1896


Creio, porém, que poesia e romance não podem fazer-se nem com o mais consciencioso estudo de momentos famosos nem com sentimentos e ideias de outros, mas só olhando esse pequeno, infinito, vacilante e eterno brilho a que chamamos nós próprios. Se um escritor quer agradar a certas pessoas junto das quais cresceu, ou imagina que tem um dever para com elas, pode escolher como símbolos da sua arte as lendas, a história, as crenças e as opiniões que são delas, porque tem o direito de escolher coisas inferiores a si próprio - o que não pode é escolher a substância da arte. Mas este livro é irlandês por ser visionário, pois a Irlanda, que ainda é predominantemente celta, conservou a par de outras coisas o dom da visão, que morreu entre nações mais prósperas e apressadas: não houve candelabros resplandecentes que nos impedissem de olhar a escuridão e, quando olhamos a escuridão, está lá sempre alguma coisa.